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Precarização como regra: a verdadeira face do trabalho terceirizado

por Renata Coutinho de Almeida

“É preciso atrair violentamente a atenção para o presente do modo como ele é, se se quer transformá-lo”
– Antonio Gramsci, in Pessimismo da inteligência, otimismo da vontade.

Certa vez ouvi que o que não está nos autos não está no mundo. Compreender essa afirmação é um grande desafio e é a partir dela que reflito sobre um fenômeno central no processo de precarização do trabalho contemporâneo: a terceirização.

Em 15 de junho, o STF pôs fim ao julgamento acerca da constitucionalidade dos dispositivos das Leis nº 13.429/2017 e 13.467/2017 que autorizam a terceirização irrestrita. A deliberação foi pela constitucionalidade de ambas. Em 2018, o Plenário já havia se manifestado sobre o tema, ao julgar a ADPF n. 324 e o RE n. 958.252, quando estabeleceu a tese, com repercussão geral, de que “é lícita a terceirização ou qualquer outra forma de divisão do trabalho entre pessoas jurídicas distintas, independentemente do objeto social das empresas envolvidas, mantida a responsabilidade subsidiária da empresa contratante”. Ou seja, toda e qualquer atividade pode ser objeto de terceirização.

Cai por terra o argumento da necessidade “externalização” das atividades-meio para garantir especialização e maior concentração da empresa em sua atividade central. Junto se vai também a discussão sobre o conceito de atividade principal e acessória firmada pelo TST há mais de 20 anos e tão utilizada para disseminar a terceirização na esfera pública e privada.

Fim da celeuma? Não para as trabalhadoras e trabalhadores terceirizados

Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil

Os tempos são de aprofundamento da precarização das dinâmicas produtivas amparado pela racionalidade neoliberal. A lógica do ‘mercado’ encontra na terceirização e em tantas outras formas de trabalho precário um modelo regulatório que submete a classe trabalhadora a níveis desumanos para manter a hegemonia do capital financeiro.

Existe um discurso sofisticado que começa a ser construído no final da década de 1970, junto à fase de reestruturação dos modelos de produção, e que se intensifica, a partir dos anos 1990, com o movimento de implementação de políticas neoliberais envolvendo, sobretudo, flexibilização e precarização do trabalho. É neste período que a terceirização encontra terreno fértil à sua proliferação. Terceirizar é um mecanismo que fragmenta o processo produtivo e eleva os lucros empresariais por meio da redução dos custos com o trabalho.

Não é de hoje que desmanche de direitos sociais é tratado como sinônimo de modernização. Quando o assunto é Direito do Trabalho, os argumentos são sempre os mesmos: anacrônico, caráter paternalista, necessidade de modernização e de adaptação às demandas da economia moderna. Argumentos carregados de abstrações incapazes de dar conta da realidade. Argumentos que sempre apresentam o Direito do Trabalho como barreira ao desenvolvimento econômico ou como um problema para o próprio trabalhador.

Chamar trabalho terceirizado de “avançado modelo organizacional”; de forma de “garantia da competitividade internacional”, de metodologia indispensável para criação de novos empregos e afirmar que há isonomia entre terceiros e efetivos por estarem ambos amparados pela lei, é desprezar a precariedade a que esses trabalhadores e trabalhadoras estão sujeitos e, ainda, ignorar as produções científicas da Sociologia do Trabalho que, há décadas, denunciam os efeitos nefastos da terceirização.

Como se os direitos sociais se concretizassem por si só ou, unicamente, por serem legalmente reconhecidos. Como se processos de inserção social e de cidadania não fossem condições para lhes garantir efetividade. Como se a vida e a dignidade no trabalho valessem menos para determinados grupos sociais.

Há um movimento de querer colocar nas costas da classe trabalhadora a responsabilidade pela crise de um modelo econômico que, estruturalmente, se retroalimenta de suas contradições. E este tem sido o papel do neoliberalismo, transformar “a democracia liberal em uma retórica vazia, sem correspondência com a realidade social”.

Com isso os terceirizados seguem na invisibilidade, muito embora, trabalho terceirizado siga sendo, na imensa maioria dos casos, sinônimo de degradação salarial, parcos direitos e extensas jornadas. A duração do vínculo é reduzida em decorrência da alta rotatividade, um óbice à percepção de direitos trabalhistas. Não é incomum encontrarmos terceiros que há mais de 20 anos não gozam férias ou recebem décimo terceiro integral. A alta rotatividade também fragiliza a capacidade de socialização do terceiro com o ambiente de trabalho e o impossibilita de planejar sua vida a médio e longo prazo.

E não é só isso. Terceirizar guarda estreita relação com processos de adoecimento condicionados ao estresse, sofrimentos psicológicos, falta de suporte à saúde e à segurança. Dados revelam que a ausência de fornecimento de equipamentos de proteção individual e coletivo, bem como a falta de orientação sobre sua utilização têm alocado os terceiros entre os trabalhadores que mais adoecem e se acidentam no trabalho, inclusive como vítimas fatais. Em tempos de pandemia este cenário está ainda mais crítico.

Segundo Paloma Santos, Secretária de Promoção de Igualdade Racial da CONTRACS – Confederação Nacional dos Trabalhadores no Comércio e Serviço, e Diretora do SINDILEMPEZA – Sindicato dos Trabalhadores nas Empresas de Asseio e Conservação da Baixada Santista, o número de contaminados por Covid-19 na categoria foi alarmante:

“A questão do EPI sempre foi um problema muito grande para nós, desde sempre. Até para o EPI mais simples que é a luva. Nos hospitais, agora na pandemia, tivemos problema com a entrega dos aventais e máscaras. Teve uma empresa que entregou capa de chuva de plástico bem fininha que você coloca e já rasga. Tivemos que divulgar nas redes sociais, notificar a empresa, daí com 2 dias eles entregaram o avental, mas continuamos com problemas com as máscaras que não eram adequadas, porque as terceirizadas estão trabalhando diretamente na linha de frente, principalmente na UTIs. Elas têm que entrar nas UTIs. Nos bancos, tivemos problemas sérios de pegar trabalhador de chinelo, sem luva, com pedaço de pano amarrado no rosto”.

Em uma sociedade em que o trabalho ocupa posição de centralidade, é preciso reconhecer que trabalhar não tem somente função remuneratória, apesar de essencial. Trabalhar desempenha, sobretudo, funções psíquicas que constituem nossas redes de significados e constroem nossa identidade. Os terceiros têm suas subjetividades agredidas.

Como bem coloca Dejours, “o corte teórico entre espaço de trabalho e espaço extratrabalho é totalmente artificial. Ao deixar o canteiro de obras, o sujeito continua sendo quem é, não pode mudar de pele nem de economia psíquica, de modo que o sofrimento no trabalho, convocando estratégias defensivas peculiares, corrompe toda a organização mental do sujeito e estende seus tentáculos até as relações com os filhos e o cônjuge”.

Outra face perversa da terceirização é sua capacidade de enfraquecer a estrutura sindical. Terceirizar fragmenta a classe trabalhadora, comprometendo a organização e a mobilização em ações coletivas. Segundo Paloma Santos, é um enorme desafio conscientizar esses trabalhadores: “estamos na limpeza pública, nos polos industriais, nos portos, na limpeza confinada de vagões, na limpeza de fossas, na dedetização, em mercados, shoppings, lojas, farmácias, consultórios. Então é um setor muito grande, mas muito pulverizado. Para você conseguir conversar com essa galera, é trabalho de formiguinha mesmo. Banco por banco, loja por loja”.

Somente as abstrações do Direito são capazes de validar a terceirização total. Se terceirizar precariza o trabalho, ampliar a terceirização poderá colocar todo e qualquer trabalhador à mercê dela. O que chamam de ‘modernização’ tem se refletido em rompimento com patamares mínimos de civilidade; profundas reformas na legislação trabalhista; retração do movimento sindical; ascensão de políticas de austeridade; desestabilização do emprego garantidor de direitos básicos, em trabalhadores ‘uberizados’.

Modernizar é nada além da desconstrução do tecido de proteção social mínimo que dá vida ao que conhecemos como Direito do Trabalho. Em ‘tempos modernos’ como estes, a regra é precarizar.

* Renata Coutinho de Almeida é Mestra e Especialista em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP). Pesquisadora voluntária no Núcleo de Pesquisa e Extensão “O trabalho além do Direito do Trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral” da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (FDUSP). Advogada.

Fonte: CartaCapital